Molenga - Centro Universitário do Rio Grande do Norte - UNI-RN
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Molenga

Na crônica passada, sob o título Honras a Tchekhov, chamei a atenção de que esse autor russo tornou-se famoso na condição de contista e dramaturgo, além de ressaltar o realismo da sua obra literária. Na orelha de um livro de contos de Anton Tchekhov, o escritor Hélio Pólvora (1928-2015) comenta: “Não são histórias que idealizam a vida. São histórias que refletem a vida comum, recriando-a, dando-lhe com a dimensão ficcional uma validade maior, uma verdade mais escaldante”. Grande parte da obra do médico escritor Anton Tchekhov floresceu em meio a crises sociais do seu país, já nos albores da Revolução russa de 1917, sob a sanha de Joseph Stalin. Tchekhov, porém, jamais se dedicou a um movimento político. Era médico do corpo e da alma, e sempre se voltava para procurar nas mazelas da natureza humana, tais como o egoísmo, a usura e o embuste, as causas das injustiças sociais.

Diante das recentes questões, no Brasil, sobre a reforma trabalhista e o trabalho escravo, achei por bem resgatar e resumir o conto Molenga, escrito por Tchekhov em 1883, numa época de tumultos na Rússia, em fase de transição entre os governos dos tzares Alexandre II e Alexandre III. O imperador Alexandre II tentou conduzir a Rússia por caminhos mais liberais, a exemplo do fim da servidão dos camponeses. Além de sutil bom humor, frequente nos escritos de Tchekhov, a mensagem deixada pelo conto Molenga persiste ao longo dos anos, porquanto as fragilidades da alma humana não mudam no decorrer do tempo. 

O texto trata de um diálogo (?) entre um patrão que chama a governanta dos seus filhos para pagar-lhe seus proventos de dois meses de trabalho. Ao afirmar que o valor seria de 30 rublos por mês, a jovem empregada Júlia tentou corrigir: – Quarenta. Mas a voz do patrão foi mais alta: – Não, foram trinta, está aqui anotado. Quando ele disse que foram sessenta dias, ela corrigiu para mais cinco dias, mas o patrão não concordou. A seguir, o chefe arguiu que tinha a descontar doze dias – nove domingos e três feriados –, nos quais a governanta tinha somente feito passeios com as crianças, e mais sete dias nos quais Jùlia não prestara bons serviços, devido a dor de dentes. Dessa forma, com o desconto de 19 dias, restavam a pagar 41 rublos. 

“O olho esquerdo de Júlia Vassilievna ficou congestionado e nublou-se. Começou a tremer-lhe o queixo, tossiu nervosa, assoou-se, mas ... sem dizer palavras”. Então o chefe alegou que ela quebrara, na noite de Ano Bom, uma xícara de chá e um pires, ou seja, são menos dois rublos. Depois, devido a uma falta de atenção da empregada, uma das crianças rasgou uma roupa, e, portanto, tinha de descontar mais dez rublos, além de cinco pelo furto de sapatos dos filhos, por parte de outra serviçal. O patrão alegou 10 rublos adiantados para Júlia, ao que ela negou, já com a voz trêmula e com lágrimas nos olhos. Com o desconto de mais três rublos adiantados pela patroa, seriam pagos somente 11 rublos pelos dois meses de trabalho. Ao final, Júlia murmurou: “Merci”. E o patrão, que era homem honesto, pagou os devidos 80 rublos, e perguntou: “Por que merci, após eu lhe extorquir, lhe enganar e lhe assaltar?” E a pobre Júlia respondeu: “Noutras casas cheguei a não receber nada...”

Daladier Pessoa Cunha Lima

Reitor do UNI-RN



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