A rua de dona Irene - Centro Universitário do Rio Grande do Norte - UNI-RN
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A rua de dona Irene

Certo dia, comprei dois sacos de cimento em uma pequena loja de material de construção, para um rápido serviço de pedreiro a ser feito em minha casa. Estava tentando explicar ao vendedor o local da entrega, quando o dono da carroça que faria o transporte do produto interrompeu para dizer: “Já sei onde fica, é na rua de dona Irene”. Moro nesta rua há quase 30 anos, e, à época que aqui cheguei, eram poucos vizinhos, muito diferente do cenário atual. Em uma esquina próxima já havia uma casa que mostrava não ter muitos metros quadrados de área, na qual, em contraste, viviam muitas pessoas. Além disso, dava para notar a presença de encontros fortuitos nas calçadas ao redor da casa, em clima de bate-papo informal entre amigos e parentes. Não demorou para que os novos vizinhos conhecessem a numerosa família, gente muito boa, gente simples, gente decente. Com o tempo, cresceram natural consideração e amizade entre os dois grupos familiares.

Nessa casa de esquina, não a maior, mas a mais movimentada da rua, a mais cheia de vida, a de frequente presença humana em qualquer dia, mora o casal José Dantas e Irene, rodeado por seus descendentes. Não há escolha, tenho de usar o verbo no passado – morava – pois dona Irene faleceu poucos dias atrás. José Dantas foi mestre de obras de grandes construtoras de Natal, até se aposentar. Dona Irene exerceu a vocação que Deus lhe deu, a de ser mãe de família cheia de amor, de carinho e de afeto pelos seus nove filhos e pelos muitos netos. Alguns filhos e netos estudaram mais e se formaram, outros seguiram o ofício do pai/avô, ou optaram por profissões diversas. A todos, transmitiram as premissas da honradez, do respeito mútuo e da justiça. A vida e o tempo nunca dispersaram essa família e aquela ativa casa sempre tinha – e ainda tem – lugar para abrigar a quantos por lá tomam ou tomavam chegada. Certa vez, soube que naquele lar viviam 32 pessoas. E dona Irene era a abelha-rainha, a matriarca, braços abertos para receber o filho ou o neto pródigo. Tudo girava em torno da sua imensa bondade, do seu amor sem limites pelos seus entes queridos.

A bondade dessa simples e extraordinária mulher ia além dos muros do seu lar. Sabia-se que ela amparava os mais pobres que passavam pela rua, os pedintes, os catadores de lixo, qualquer um vencido pela fome e pelo cansaço. A todos esses, dona Irene estendia-lhes a mão, dava-lhes um pão com manteiga e uma xícara de café, ou um prato de comida. Saciava-lhes a fome e a sede, sem pedir-lhes nada em troca, um exemplo típico da gratuidade do amor, autêntica prática anônima do Evangelho de Jesus Cristo. Parece até que Ele ajudava a transformar o pouco em muito, como se fora uma réplica da “multiplicação dos pães e peixes”. Católica de grande fervor, sobretudo pela prática no dia a dia da compaixão e da caridade cristã, dona Irene era devota do Padre Cícero, sendo romeira a cada mês de dezembro ao Santuário do Juazeiro.

Volto ao começo do texto, quando citei o carroceiro humilde que disse saber o lugar da entrega dos sacos de cimento: a “rua de dona Irene”. Este sim é um nome muito mais correto para essa rua, em honra a uma mulher simples, mas repleta de grandezas humanas. Não seria uma homenagem à riqueza, ao poder, ou mesmo ao mérito cultural, mas seria um tributo a uma mãe de família que sabia dividir o imenso amor do seu coração com as pessoas próximas, e que tinha um olhar de compaixão cristã para com os desvalidos. Agora, com a falta que faz dona Irene àqueles para quem transferiu pleno amor, bem assim àqueles de quem sentiu tanta piedade, quando também não mais se verá sua figura marcante nas reuniões das calçadas ao redor da casa de esquina, é lembrar o Evangelho: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus”.


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